Num dá pra aprender o que a gente não sente

Priscila Argolo
6 min readJan 12, 2024

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Issa e Molly em Insecure. Foto da internet.

Niara e Uiara combinaram de enlouquecer juntas, porque sozinho ninguém faz nada. Toda semana elas combinam de comer em algum lugar para fazer jus ao combinado. Dessa vez escolheram o Zumbi Lanches e começaram a conversar enquanto esperavam sua vez de comer.

— Ai, mulher, esses dias lembrei daquilo como se fosse hoje — disse Uiara depois de beber um gole do suco de acerola e continua — Memória é coisa que enche o coração sem precisar conviver. Não é igual a escola que meus sobrinhos vão. Precisa fazer várias vezes pra aprender não, só precisa mesmo é sentir.

— Niara, nem sei em que brisa você entrou, mas a gente nunca aprende aquilo que não sente. Vi num sei na onde que todo hábito tem sua recompensa, que nem quando trampamo pros outro. As empresas criam um hábito em nóis que faz o trampo ser automático — responde Niara gesticulando como quem sabe do que está falando.

— Mano, isso daí só funciona se passar pelo período de experiência, Uiara gargalha alto.

— Tô falando sério, mano. Era assim com a matemática. Nossa, era muito fácil decorar música, mas não sabia fazer conta de dividir, o baguio não entrava na cabeça. E até hoje não me saio tão bem — responde Niara.

— Verdade, amiga — complementa Uiara — tudo tinha que ser decorado, mas quando realmente precisava, cê já tinha esquecido. Acho que isso é de propósito, no trampo tudo automático, isso é o que faz a gente não aprender.

— É por isso que a gente não aprende quando não sente com paixão, suspira Niara olhando pra cima sugerindo estar reflexiva.

— Ih, tá brisando — retruca Uiara.

— Tô nada, mano. Sabe o que eu lembrei naquele dia? Que a gente só aprende com aquilo que temos paixão. Não existe coisa melhor que o prazer de fazer uma parada e botar o coração naquilo. Isso traz memórias que faz o coração ficar fofinho — diz Niara enquanto olha com os olhos brilhantes para o lanche que se aproxima da mesa.

— Aqui está o lanche da casa que pediram, mais alguma coisa? — pergunta o garçom.

— Por enquanto é só isso, obrigada — responde Uiara e retoma o que estava falando — Agora vai falar que tem que tá amarrado pra aprender as coisas? Tô suave de arrumar alguém agora, só dor de cabeça — caçoa Uiara.

— Não, sua louca — responde Niara — Tem nada a ver com paixão de novela, não. Pelo quê você tá apaixonada não importa, amiga. O que importa é o que você enfrentaria pra viver essa paixão — Niara faz uma pausa dramática para pensar — Sei lá, tem gente que ama trabalhar pros outros e faz daquilo um hábito, tá ligada? Eu já acho um saco fazer isso, mas preciso do dinheiro.

— Eu também não gosto, não. Tá maluco. Eu quero mesmo é abrir minha loja, mano. O foda é que eu preciso passar por vários venenos pra botar ela pra cima. Às vezes eu fico com medo de não conseguir, sabe nega — diz Uiara.

— É ali que você quer chegar, mas tem que ter paixão pra conseguir. Tomara que você tenha coragem, porque tem vezes que eu não consigo sair do lugar — responde Niara pensativa.

— Ah, preta… Eu nunca amei trampar pros outros e, quando saí, esqueci de tudo, como se eu não tivesse aprendido nada. Acho que eu sentia tanto ódio de pegar o trem pra lá que esqueci rapidinho — Uiara ri alto e todo mundo para o que está fazendo para olhá-la e, sem ligar, retoma o que falava — Agora, garimpar pro brechó é no que eu sou boa. Mano, eu preciso fazer minhas roupas e é isso.

— Verdade, né? Eu nunca esqueço como fazer as coisas que eu gosto, já as coisas que eu não curto, não aprendo nada… Seloko, isso rouba minha brisa. Mas tem uma pá de gente que ama fazer o que eu odeio. Lá no trampo mesmo, tem uma pá de gente que ama ir pra lá. Só que eu não consigo vestir a camisa — desabafa Niara.

— Mas não precisa vestir, mano. O negócio é pagar o que for preciso pra fazer aquilo que nóis curte. Que nem, mano, a Ayana tá suave ganhando dinheiro com dança, caraio. Nem acreditei quando ela me contou… E nóis aqui passando veneno — responde Uiara revoltada com a situação que está vivendo.

— Então, morena, acho que é isso. Ela ficou mó tempão sem dançar e voltou como se nunca tivesse parado — Niara sorri enquanto conta — Daora, né, mano? Achei que ela tinha esquecido como dançava, sem maldade.

— É que nem você disse, tudo o que a gente não gosta, num aprende. Nois trampa 7 anos no que não gosta pra sobreviver e deixa o que nóis curte fazer de lado — resmunga Uiara enquanto mastiga o seu lanche — , sendo que dava pra ganhar com isso se a gente tivesse coragem pra começar de baixo.

— Mas é isso mesmo, nega. Parece que a gente não chega em lugar nenhum quando não tem paixão. Esse negócio de só aprender com o que a gente sente é tanto pro que é daora, quanto pro que é zoado. Se não começar de baixo, começa de onde? — responde Niara batendo as unhas em gel no copo de vidro.

— Oxe, tem gente que dá sorte de começar de cima, mas de algum lugar tem que sair, responde Uiara. Achei que cê tava falando de sentir coisas boas, prê.

— Não, mano. O que você aprendeu com esse seu trampo? Pergunta Niara.

— Nem quero aprender nada lá, só preciso do dinheiro — Uiara responde com tom de impaciência.

— E o que você aprendeu com isso tudo? — Pergunta Niara insistindo em espremer a Uiara para falar.

— Que depois que eu montar minha loja não quero mais trampar pros outros, tá ligada? Certeza que eu vou ganhar muito mais, responde Uiara.

— Então, mano, cê não tá nem aí pro conteúdo do trampo, porque não tem paixão — confronta Niara — Muitas pessoas amam o que fazem lá, mas parecem mortas, automáticas e sem brilho no olhar. Quando cê fala do seu brechó, dá pra ver que o brilho é diferente.

— Pode pá, amiga — Uiara concorda e olha para amiga com a boca lambuzada da maionese verde, enquanto continua — Entendi o que cê tava falando sobre paixão. Quando a gente sente gana por algo, nóis enfrenta o que for preciso, até ficar num trampo lixo pra chegar no objetivo. Tem que agradecer, né, mano. Muita gente sem trampo por aí.

— Tem essa de agradecer não, nega. Você tá prestando um serviço e tão te pagando por isso. Eles não tão te fazendo caridade. Larga disso e investe nas suas paradas — responde Niara empolgada.

— Vou agilizar isso! Mas deixa eu te contar uma parada, cê viu que a Olu tá ficando com o Akin? Faz nem sentido, mano. Os dois não vão dar pé, não — Uiara começa a fofocar como quem nada quer.

— Miga, por que você é assim? — Niara ri desconcertada — , mas tô sabendo que tem tempo que eles tão nessa…

O assunto é delicado, deixa o resto pra depois.

Niara e Uiara são as minhas versões de Issa e Molly da série Insecure, mas aqui elas ganham diálogos que pode servir de reflexão, como pode não dar em nada. Ué, vou mentir?

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Priscila Argolo

Ninguém me deu permissão pra sonhar, mas eu já sabia o quanto era bom. Mãe do Jota, companheira do Marquinhos e a humana da Akira.